Aqui jaz meu corpo ainda vivo, num quarto de hotel. O sangue escorre na memória das últimas horas. Sinto seu gosto na garganta, sufoca-me. Mas estou sem forças para morrer.
Eu poderia ter clamado piedade, um tiro de misericórdia. Mas a arma que me cala é arma branca, como era branca a pele do meu seio que vejo trucidado.
Vinte e tantas primaveras e acho que a morte já me vem tardia. Uma vida sem regras termina cedo. É selada com sangue. Faz parte do jogo daqueles que teimam em viver. Não reclamo, eu quis assim. Preferi as noites em claro à claridade do dia. Quis o copo, a fumaça, o risco. Abdiquei do direito à saúde, à morte natural.
Sempre temi a morte natural, deve ser horrível! Sair da vida com ordem de despejo, como se o próprio universo já não suportasse sua presença. O fim, durante o sono, indolor, sem explicações, foi feito para os fracos. Eu bem sei o que posso suportar. Não verei filhos crescidos, nem netos, nem viverei o suficiente para ser um estorvo. E ainda assim, serei lembrada.
Sinto dor, mas não quero gritar. Queria perder a consciência, mas algo me mantém lúcida para o que há de vir. Todo sangue do meu corpo já se perdeu e a morte não vem. Não vejo anjos, não vejo deus, não vejo o filme da minha vida, nem tenho calafrios, apenas dor.
Ele parecia tão gentil...
Nunca se sabe quando o escolhido para romper sua história estará presente. Eu nem percebi. Sempre confiei naqueles com quem dividi a mesma cama. Pareciam que quando despidos, não havia o que esconder, tornavam-se homens, nada mais.
Hoje não foi diferente, quando vi o punhal e seus olhos me perfurando, tudo que senti foi calor. Um calor de quem se entusiasma diante da novidade. Não consigo lembrar seu nome. Segurou meus cabelos com toda sua ira e mordeu meus lábios, foi um beijo. Meu último beijo.
– Se queres tirar minha vida, que saibas fazer com classe! – intimei, ainda sorrindo, ao que parecia ser um jogo. Era um jogo. Mas o primeiro golpe mostrou que não havia regras.
Sem regras, como toda a minha vida.
Senti a dor do meu seio rasgado e caí. Não pedi socorro, não chorei. Não quis recusar a morte, gentilmente oferecida. Não lembro seu nome e até sua imagem surge distorcida.
Penetrou-me bruscamente, como se não bastasse minha dor. Quando senti meu ventre invadido, esqueci por um instante que do meu peito jorrava sangue e gozei do meu último prazer. Os prazeres da carne que precede o fim é privilégio de poucas. Gritei e só fiz isso porque senti a excitação que meu pânico lhe causava. Não decepcionei. Ainda sinto o forte cheiro do seu corpo, eu só queria lembrar seu nome.
Vestiu-se calmamente, enquanto o que de mim sobrava rastejava pelo quarto. Pensei que ouviria explicações, mas não disse uma só palavra. Foi embora, não olhou para trás.
Premiada com a tragédia, serei notícia. Alguns amigos darão depoimentos e citarão belas palavras em meu enterro.
Com que foto minha estamparão os jornais de amanhã? Espero que com a minha preferida, de um tempo que parecia feliz.
Não sinto mais meu corpo, está tudo dormente. E minha cabeça não adormece. A morte não veio. A diária venceu. E eu não quero ser encontrada com vida. Quero a morte solitária num quarto de hotel como num filme europeu.
Ouço gritos, ouço sirenes, ouço portas baterem. É uma desgraça eu ainda ter os meus sentidos. Ouço passos virem ao meu socorro. Malditos que não deixam os quase mortos em paz. Fecho os olhos, quero estar morta, mas a pulsação me entrega ao carrasco. Os heróis me salvam como num filme americano: sobrevivente, mutilada, estorvo.
Não, minha história termina aqui ou nunca mais terei chance de tão belo desfecho. E quanto à maldita morte que ainda não veio, espera que me leve esta noite para que eu não tenha que ir buscá-la. E buscarei, se preciso, assim que lembrar seu nome.
quarta-feira, 30 de maio de 2007
Le nom de la mort
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3 comentários:
Benedito João dos Santos Silva Beleleu, vulgo Nego Dito, Nego Dito
muito, muito, muito, muito bom!!!
me empresta seu Valium???
Forte drama, belo relato.
Mhel???, você é filha do Nick Cave da fase Murder Ballads?
O cenário do último filme europeu com tema de morte que eu vi era uma praia: O Tempo que Resta.
Uma morte na praia, como no clássico O Que Teria Acontecido à Baby Jane...
Beijão!
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