segunda-feira, 12 de novembro de 2007

ADOLFO, O FUHRER

Primeiro sentamos envolta de uma mesa rústica de madeira, numa sala igualmente rústica e paramos, todos os quatro em silêncio, à espera ansiosa do nosso anfitrião. A poetisa de uma perna só foi até um dos quartos, equilibrando-se como podia, ora tocando as mãos na parede, ora apenas escorando o corpo – ficamos ali, olhando a cena. Ela já conhecia o lugar e tinha feito todos os preparativos para a nossa visita. Éramos então jovens estudantes universitários e estávamos atrás de uma boa matéria para estampar a capa da edição comemorativa dos quatro anos do nosso zine. Isso foi em 1987, em uma cidadezinha catarinense, afastada do Atlântico e das fronteiras estaduais. Um amontoado de pastos com minúsculas plantações de vilas aqui e acolá. Foi bem as três da tarde, que ele entrou na sala acompanhado da poetisa manca. Olhou-nos um por um e seus olhos continuavam os mesmos, na verdade, não mudara quase nada, o cabelo, agora branco, dava-lhe uma imagem envelhecida, embora nem um pouco cansada, exceto pelo bigode, que não usava mais, tudo permanecera igual. Sentou-se à mesa conosco e outras xícaras de café foram servidas. Fez um breve aceno para a poetisa, que a essa altura já sabíamos tratar-se de uma espécie de ajudante ou empregada, ela então foi até a enorme e antiga vitrola que ficava no corredor, entre a sala e um dos quartos, colocou Wagner para tocar. Foi a Isabel quem primeiro falou, estávamos todos nervosos demais e ele provavelmente percebera isso, serviu-nos outra rodada de café, enquanto ela fazia a introdução, daquela que seria a primeira de tantas perguntas que tínhamos a fazer. - São meus amigos – ele disse, e o sotaque e entonação daquelas suas primeiras palavras tornavam-no agora inconfundível até mesmo para nós, jovens aspirantes à jornalistas – eu os conheci bem, colhemos frutas às margens do Siena em 1943 – referia-se ao casal Eva e Henz Dickenback, pintores iniciantes, que depois fizeram muito sucesso com suas pinturas excêntricas-sexualistas sobre o holocausto, Hiroshima e Nagasaki. – O senhor realmente comeu a torta? – perguntei. A famosa torta recheada de cocaína e substâncias alucinógenas que os alemães andavam testando em seres humanos e que supostamente, depois de descoberta pelos aliados, foram utilizadas em experimentos da CIA na década seguinte e pelos Hippies, cerca de vinte anos depois – Cinco pedaços inteiros – ele disse, sem hesitar e então a poetisa trocou o disco da vitrola, continuamos nossa conversa, embalados por Carlos Gardel e um coro desafinado de dançarinas e tietes num especial para a TV Argentina – E aquela estória dos pombos? – foi o Otto que perguntou dessa vez – Não passa de boato, embora eu tenha realmente pintado alguns na primeira grande guerra – esse boato dos pombos pintados de verde e vermelho que apareceram na Inglaterra depois de terminada a guerra correra o mundo durante décadas, diziam tratar-se de cores místicas que de alguma forma prenunciavam o renascer de um radicalismo nacionalista alemão nos anos 60 – Pintei alguns, cerca de sete ou oito, mas nenhum de verde ou vermelho gostava mesmo era de azul – ele disse, passando a mão no queixo onde uma barba de três dias crescia. – Alguma razão para preferir pintar os pombos de azul? Isabel perguntou – Não, nenhum em especial, talvez fosse porque ficavam invisíveis quando estavam voando, apenas isso – então a poetisa aproximou-se dele, conversaram baixinho alguma coisa e logo depois ela apontou-nos o relógio. Nosso tempo tinha acabado. Pedimos para fazer umas fotos, mas não deixaram. Desligamos o gravador e fomos embora. Seguimos em um velho Passat pela estradinha de terra, com cercas de arame farpado dos dois lados. Seguimos em silêncio, talvez estivéssemos ainda sob o impacto da entrevista, de ter encontrado o endereço certo, depois de tanto tempo procurando. Agora finalmente tínhamos uma matéria interessante para a edição comemorativa do zine. – Qual será a frase da capa? – perguntei, e por um momento, todos ficaram pensativos, e foi a Isabel quem sugeriu: - Que tal, Pombos Invisíveis no Céu Azul – Gostei dessa – eu disse – Fechado – o Silvio falou pela primeira vez e então o Otto freou o carro com tudo, para dar passagem para duas vacas e um bezerro que passavam despreocupadas, cruzando a estradinha de terra.

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