sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Sonho


Vocês se acham muito importantes nesse mundo, sendo o que são: humanos. Tive um sonho que mostrava mais ou menos isso. Estávamos num ônibus, eu e outras pessoas desconhecidas. O veículo estava parado. Na rua passavam homens com camisas de times de futebol, os mais variados. Eram muitos e os que chegavam mais perto dos vidros atiravam frutas ou nos ameaçavam, davam socos e pontapés na lataria do ônibus. Desesperados, conseguimos ainda manter silêncio enquanto aguardávamos o motorista terminar seu almoço num restaurante em frente. Ele andava por aquela bagunça como se fosse imune aos esbarrões, socos e cotoveladas. Nessa espera, a coisa mais irritante que aconteceu foi quando um tal, lá do último banco do ônibus, começou a tocar um rock no violão. Aquela música enervava ainda mais aos de fora, que pareciam não acabar nunca, e nos enchia de raiva, aos de dentro. Quando íamos jogar o tocador pela janela, o motorista voltou. Perguntou se alguém queria uma laranja e nós respondemos que não. Ele disse que não era possível viver sem uma laranja após o almoço e que era por isso que nós éramos tão brancos e tão fracos. Pedimos que ele nos tirasse logo dali e ele o fez. Depois de ter dirigido menos de quinze metros, parecia que aquela multidão de torcedores de futebol tinha se dispersado. Saí do ônibus e um amigo da faculdade me acompanhava. Enquanto descíamos a rua, ela ficava cada vez mais íngreme. No início era uma leve inclinação, mas depois de algum tempo não sabíamos mais se estávamos pisando o chão ou uma parede. De repente uma garoa fina e levemente adocicada se fez. Paramos em frente de uma casa estreita, ficava num patamar superior à rua e tinha uma escada que levava à porta. Era evidente que alguém costumava fumar sentado ali, mais pelo cheiro que se despregava dos degraus com a chuva do que pelas centenas de bitucas de cigarros jogadas na calçada. Como se não houvesse mais nada a fazer, subimos as escadas e batemos na porta. De uma janela que ficava acima e à esquerda, um homem que vestia uma máscara hospitalar gritou que entrássemos. Depois da porta, o nível do piso ficava cerca de meio metro mais baixo. Tivemos que pular para entrar e nisso esbarramos nos móveis que estavam espalhados desordenadamente pela sala; prateleiras, cadeiras, mesas, bancos, cinzeiros de pedestal, todos metálicos. Um pouco à frente havia uma mesa comprida. O homem da janela e mais outros três, vestidos com roupas de açougueiro, trabalhavam em cima dessa mesa. O chão desse cômodo tinha também uma espécie de inclinação, que nos forçava sempre a seguir em frente. Por cima da mesa estavam pedaços e mais pedaços de carne, molhados de sangue, quentes ainda. O odor que despejavam no ar parecia com o cheiro que a chuva tinha deixado sobre minha pele. Descendo um pouco mais, havia mais que pedaços de carne jogados sobre a mesa. Primeiro foi a metade de um boi, pouco à frente, a cabeça de um porco, estava esmagada... lembrei que os açougueiros trabalhavam sem facas, usavam martelos pendurados na cintura. Descemos um pouco mais e encontramos um latão com alguns corpos humanos, nenhum deles inteiro. Meu amigo de faculdade deu um grito, um grito de alegria. Tirou do bolso um canivete, arrancou um pedaço de uma das pernas que estava jogadas ali, fez uma cara de aprovação e me ofereceu um pedaço. Eu me afastei um pouco e ele disse que adorava carne de perna mal passada. Me afastei um pouco mais e percebi que a parede que me pressionava era feita também de carne. Nessa mesma hora parte da parede desmoronou e eu tive de pisar naqueles membros e órgãos para não cair e ser soterrado. De início fiquei surpreso com tudo aquilo, a parede, meu amigo se deliciando daquele jeito, mas foi por pouco tempo. De uma hora pra outra minha sensibilidade desceu a níveis ridículos, eu não me importava mais com tudo aquilo. Senti vontade de comer um pedaço daquela carne e depois subir até os torcedores e matá-los sem piedade, mas depois pensei que até isso seria demais para eles; apenas passei a ignorá-los. Sentia, naquele momento, uma frieza sem igual e pensava que nenhuma daquelas aberrações se diferenciava das outras que estão cotidianas em nossa vida. Senti um desprezo profundo por tudo que fosse vivo e respirasse e, especialmente, pelos que pensavam ou ao menos fingiam que o faziam. Absorvido por esse desprezo mal percebi mudanças sutis no cenário. No chão, ao meu lado direito, havia, no lugar onde antes tudo era carne, um recipiente branco, quadrado, grande o suficiente para que um ser humano de aproximadamente 1,58m deitasse e agonizasse, encoberto de água, esperando a hora da morte. Esse era outro amigo meu, das antigas, vamos chamá-lo de P.. Ele estava lá deitado, apenas as narinas e a boca pra fora da água. Vestia calça jeans e uma camiseta preta. Lembrei dos problemas de saúde que teve na infância. Pensei que estivesse morto., mas o desprezo que tinha tomado conta de mim impediu que eu me comovesse. De repente, P. disse meu nome e olhou para mim, mas não conseguia se levantar. Retribui a saudação, um oi seco, mas não o ajudei. Vi em seus olhos que ele sabia por que não o ajudava, porque eu imaginei que já estivesse morto e descobri-lo vivo ainda era um incômodo para mim; mas ele compreendeu meu sentimento e até achou bom que eu não me esforçasse contra a vontade. Olhei pra frente, o amigo de faculdade continuava comendo, me entreguei novamente ao sentimento de desprezo. Quando olhei pra baixo novamente, P. se contorcia dentro do recipiente, Seu rosto amarelava, ficava quase verde, ele respirava ainda, não morria afogado, era o desespero que o matava. De repente seus olhos ficaram vermelhos e transversais, ele perdia qualquer resquício de humanidade que ainda lhe restava. Eu percebia que eram seus últimos momentos e fiquei observando, ansioso pra que aquilo acabasse logo. Mas não foi nada rápido. Antes do fim, comecei a chorar, chorar desesperadamente e com uma força tamanha que em nada eu já havia sentido algo parecido em toda a minha vida. Chorei por horas enquanto seus olhos deixavam de ser vermelhos e o tom de sua face voltava ao normal. Quando minhas lágrimas secaram ele já estava bem. Agradecei-me pelo esforço que fiz e começou a brincar na água como uma criança numa piscina infantil. Olhei pra frente novamente e aquela chuva agridoce partia além das montanhas. A vegetação que surgiu à minha frente levava, como se fosse um corredor, a um ponto escuro no meio da floresta. Tudo era verde, mas sombrio. Os pássaros começaram a gritar e os macacos a cantar. Faziam um barulho cada vez mais alto até se confundirem com o alarme do meu despertador.


Não, senhores humanos, não somos a coisa mais importante desse mundo. Não creiam que há um deus nos aguardando após a morte. Se houvesse, nos daria tanto valor quanto o que damos aos porcos e às bactérias; carne suculenta e iogurte de primeira. Nossa história, nossa cultura, nossa tecnologia, teorias que desvendam ou criam todos os segredos de tudo o que existe, tudo do que nos orgulhamos, nada disto faz sequer alguma relevância na existência desse universo. Somos insignifiacantes e ainda seremos quando pudermos nos glorificarmos de ter destruído tudo. Choramos às vezes e isso é forte, pra nós, mas é ridículo e, repito, irrelevante, se comparado a tudo o que não podemos enxergar ou imaginar. Talvez seja por isso... talvez esse deus que buscamos seja apenas um válido subterfúgio, que procuramos para tentar superar essa nossa grandiosa pequenez.


Nada mais.

Um comentário:

Mhel disse...

Angustiante a descrição do teu sonho, Rafa! Lembra um filme trash, mas lembra a realidade também. Como os mendigos que dormem na minha rua, quando pulamos sobre eles pra seguir nosso caminho sem sair da calçada.
Pergunta básica: quem é P.? (conheço um P. de 1,58m que posta bastante nesse blog...)
Conselho básico: pare com as drogas.