sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Auto análise.


Foi o caso de alguém me perguntar por qual motivo lia o mesmo livro pela terceira vez seguida. Tentei supor pra mim mesmo que seria algum esquecimento ou desatenção durante o texto ou qualquer outra desculpa que servisse pra me tirar de tal flagrante. Não encontrei nada, respondi que talvez fosse por conta de alguma idéia ou frase solta que eu tivesse ouvido por aí e que meu subconsciente se aproveitara pra cultivar alguma massa bolorenta na minha mente, provocando tal resultado, a tripla leitura seguida daquelas mesmas páginas. O alguém não deu a mínima atenção à minha resposta e achou que talvez o livro fosse muito bom. Repreendi a figura com um olhar sério, de terror, e depois dos cinco segundos disse que tudo bem, que levasse o livro emprestado, e tive de conter corpo adentro toda a ânsia e desespero que me atacavam enquanto fechava o livro e o entregava nas mãos do alguém, quase mudando de idéia e fugindo no último instante. Mais que isso não pude e troquei de calçada, andando na direção oposta dele. Foi neste caminho sério que pela primeira vez percebi algum sinal de uma loucura que há tempos tomava conta de meus pensamentos e de minha vida.

Fugindo daquela situação não conseguia entender exatamente o que era aquilo que sentia. E, estranho, essencialmente, tanto me importava se viesse ou não a entender; nenhuma necessidade me abordava.

Algum tempo depois, caminhando a passos mais lentos, desdobrava e confundia meus pensamentos, curiosos sobre que tipo de satisfação era aquela, que parecia estar firme e inabalável diante de qualquer coisa que resolvesse ou acontecesse de tombar nos caminhos desta minha vida, pelo pouco que pude determinar de início.

É necessário esclarecer que essa curiosidade não tinha nada de urgente, ficava longe de parecer um sedento correndo a um gole d’água. Ela era como quando atiramos pedras no fundo de um lago; nós nunca precisamos fazer isso, e sempre sabemos que só conseguimos mesmo é acertar a superfície do lago.

Seguindo e contrariando parte do que acabei de expor, ao menos nesse caso minha pedra deu mostras de existir da superfície um pouco abaixo.

Iniciei por analisar a situação e a sensação mais recentes, tentando compará-las com algo já passado parecido. Não foi difícil. Coletando alguns exemplos, percebi que uma coisa constante era que em nenhuma delas existia, aparente ou camuflada, qualquer sinal de razão específica que as provocava.

Creio necessário esclarecer mais alguns pontos por aqui:

I. Quando digo “sensações”, refiro-me àquela satisfação inabalável, independente de qualquer sorte, da qual já disse. Algo que pode até ser confundido com resgnação, mas que é completamente diferente disso.

II. Por “situação”, basta entendê-la como tal, a cada vez que se manifesta a satisfação já citada duas vezes.

III. razão, em minúsculo, será o sinônimo de motivo; Razão, será Razão mesmo.

IV.

Os primeiros exemplos pareciam banais. Eram também mais perceptíveis, pois aconteciam com coisas materiais.

O pouco apreço pelo troco esquecido. O desdém pelo prejuízo que o carro pedia. A inanimada reação da vez que o apartamento entrou em chamas. Tudo isso e muitos outros fatos sempre acompanhados por uma invulnerabilidade psicológica admirável. Pareciam a mesma coisa que comer, com gosto, um chocolate sem gosto.

Logo depois percebi que o trato com as pessoas não deixava nada a dever, o qua não era de todo mal.

Se nenhuma delas era especial aos meus olhares, também nunca pensei em censurá-las, muito menos odiá-las ou prejudicá-las. As recompensas e as más conseqüências que eu podia gozar ou sofrer por conta daqueles que me rodeavam não eram nada de mais. De umas eu abdicava, das outras, ignorava-as.

Foi assim por muito tempo. Primeiro de uma maneira escassa, que mal bastava pra perceber. Mas isso foi crescendo e tomando conta de minhas atitudes, devagar, sem ruídos que despertassem minha percepção, até se tornar parte de mim, e eu disto.

A próxima fase veio mais nítida pra mim. Não se tratava de tratos com valores ou pessoas. Foi algo que desorganizou meus sentidos.

V. Sentido – conjunto sensorial – visão, audição, tato, paladar, olfato.

Um grilo, azul como a cor do céu sem nuvens numa tarde de primavera, do tamanho de um carro, girando suas antenas no leito de uma avenida movimentada. De repente, o silêncio. Buzinas, helicópteros, ambulâncias, os motores dos carros, as vozes das pessoas, tudo se calou. Eu podia apenas ouvir um chiado agudo que o grilo fazia com a boca.

Essa foi a primeira vez que meus sentidos se manifestaram dessa forma. Como eu estava atrasado pra uma reunião e esperava o semáforo dos pedestres esverdear, e como ele esverdeou, atravessei a rua e segui meu caminho sem dar alguma importância àquilo.

Depois desta foram tantas e tão variadas as alucinações – quero encontrar outra palavra pra isso – que seria impossível descrevê-las todas. A mais freqüente era a que meus sapatos conversavam comigo, debaixo da cama, não me lembro se eu ou eles, antes de dormirem. Certa vez vi o mundo virar do avesso e se esconder, num vácuo, no meio da minha barba.

XIII. No lugar de “alucinações” talvez eu possa usar algo como “situações fora do comum”.

Quando já me acostumava com as situações fora do comum, adquiri outro tipo de patologia – talvez eu continue a usar esta palavra mesmo, “patologia”. Tratava-se dos atos compulsivos.

Sentava em frente à tv apenas para ficar trocando de canais; a coisa era com os botões do controle remoto.

Uma vez, depois que decorei a primeira metade da lista telefônica de Madri e a segunda metade de um dicionário inglês-português, pude realizar meu sonho de escrever um livro com algum conteúdo.

Às vezes saía de casa com um cronômetro e dava voltas no quarteirão. Meu recorde foi realizar trinta e sete voltas seguidas com o mesmo tempo: sete minutos e vinte e três segundos.

XC.

Fui detido pela polícia duas vezes quando surgiu minha repulsa pela perfeição. Nada que fosse quadrado ou redondo o suficiente escapava de minha raiva – não cheguei a matar nenhuma pessoa. Televisões, geladeiras, paredes, rodas de carro, etc., etc., etc., destruía-os. Depois de um tratamento intensivo em exposições de arte moderna – nelas eu ficava mais calmo – consegui superar este problema.

Ao menos este. Não parou por aí.

Quanto dinheiro gastei comprando maços e maços de cigarros que não fumava; ficava oferecendo-os nas catracas dos metrôs.

Uma vez ouvi dizerem que latinhas de refrigerante e cerveja estavam planejando aniquilar o universo, ou coisa parecida, daí eu entendi aqueles profetas que moram nas ruas. Comecei a juntá-las e a roubá-las e jogava-as numa fossa que tinha cavado no quintal de casa quando da minha compulsão por encontrar ouro ou petróleo e ficar milionário vendendo o terreno para o governo dos U.S.A..

E muitas outras compulsões também. Tantas e tantas e tantas que seria muito custoso, pra mim, contar, e pra qualquer um, sabê-las.

A última que aconteceu foi a primeira da qual contei. A história do livro. Iluminado seja sempre o indivíduo que me abriu os olhos pra minha insanidade. Naquele dia, depois de pensar muito, decidi que acabaria com tudo aquilo.

Lutei por três semanas, fugindo de tudo o que eu pensasse mais de duas vezes, até que percebi que já estava incorporando outro vício.

Procurei ajuda e a encontrei no momento em que entrei numa igreja. Me libertaram do mal que me afligia.

Hoje não sou mais louco, tenho meus irmãos comigo.

Vez ou outra tenho umas recaídas, mas, graças a Deus, descobri que escrever é uma boa terapia.

Um comentário:

Subverso Livros disse...

Rafael....cuidado! escrever é coisa do diabo, coisa do capetão mesmo. inclusive agora, enquanto digito essas mal traçadas linhas de domingo de tarde, sinto o sussurar ds palvras no meu ouvido, ele tem rabos, casco de cavalo e chifres....podiscrer maluco....e o pior de tudo: o caminho é sem volta, portanto mergulhe: como essas pedras todas que atiramos nos poços da nossa imaginação1