quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Erostrato


Comecei a crer que meu destino seria curto e trágico. Isso me amedrontou a princípio, depois me habituei. Encarado sob certo ângulo, é atroz, mas, de outro lado, dá ao instante que passa uma força e uma beleza consideráveis. Quando desci à rua, sentia em meu corpo uma força estranha. Tinha junto a mim meu revólver, essa coisa que explode e faz barulho. Mas não era mais nele que punha minha segurança, era em mim, eu era um ser da espécie dos revólveres, dos petardos e das bombas. Eu também, um dia, no fim de minha vida obscura, explodiria e iluminaria o mundo com uma chama violenta e fugaz como um clarão de magnésio.
Aconteceu-me, por essa ocasião, ter muitas noites o mesmo sonho. Era um anarquista, tinha-me colocado à passagem do czar e levava comigo uma máquina infernal. À hora ajustada, o cortejo passava, a bomba explodia e sob o olhar da multidão nós voávamos pelo ar, eu, o czar e três oficiais com galões de ouro. Eu ficava, agora, semanas inteiras sem aparecer no escritório. Passeava pelos bulevares, no meio de minhas futuras vítimas, ou encerrava-me no meu quarto fazendo planos. Despediram-me no começo de outubro. Ocupava, então, minhas horas vagas redigindo a seguinte carta, que copiei em 102 exemplares.

“Senhor
Sois célebre e vossas obras alcançam tiragens de 30 mil exemplares. Vou dizer-vos por quê: é que amais os homens. Tendes o humanismo no sangue: eis a vossa sorte. Desabrochais quando estais em boa companhia; quando vedes um de vossos semelhantes, mesmo sem conhecê-lo, sentis simpatia por ele. Admirais o seu corpo, pela maneira como é articulado, pelas pernas que se abrem e se fecham à vontade, pelas mãos sobretudo; agrada-vos que haja cinco
dedos em cada mão e que o polegar passe a opor-se aos outros dedos. Deleitai-vos quando vosso vizinho pega uma xícara da mesa, porque ele tem um modo de pegar que é propriamente humano e que sempre descrevestes em vossas obras como menos elástico e menos rápido que o do macaco, não é? Porém muito mais inteligente. Amais também a carne do homem, seu comportamento de um mutilado em reeducação, seu ar de reinventar a marcha a cada passo e seu famoso olhar que as feras não podem suportar. Foi fácil, pois, encontrar a linguagem que convém para falar ao homem de si mesmo; uma linguagem pudica mas apaixonada. Os indivíduos atiram-se com gula aos vossos livros, lêem-nos numa boa poltrona, pensam no grande amor infeliz e discreto que lhes dedicais e isso os consola de muitas coisas, de serem feios, covardes, cornos, de não terem recebido aumento em primeiro de janeiro. E diz-se, de bom grado, de vosso último romance: é uma boa ação.
“Tereis curiosidade em saber, suponho, o que pode ser um homem que não gosta dos homens. Pois bem, sou eu e eu os amo tão pouco que vou, agora mesmo, matar uma meia dúzia deles; talvez vos pergunteis: por que somente uma meia dúzia? Porque meu revólver não tem mais que seis cartuchos. Eis uma monstruosidade, não? Além do mais, um ato propriamente impolítico? Mas eu vos digo que não posso amá-los. Compreendo muitíssimo bem o que vós sentis. Mas o que neles vos atrai a mim me repugna. Vi, como vós, homens mastigarem com moderação, conservando o olho adequado, folheando com a mão esquerda uma revista econômica. É culpa minha se prefiro assistir à refeição das focas? O homem nada pode fazer de seu rosto sem que isso vire jogo fisionômico. Quando ele mastiga conservando a boca fechada, os cantos dos lábios sobem e descem, ele parece passar sem descanso da serenidade à surpresa chorona. Gostais disso, eu o sei, chamais a isso vigilância do Espírito. Mas a mim isso me aborrece. Não sei por quê; nasci assim.
“Se não houvesse entre nós senão uma pequena diferença de gosto, eu não vos importunaria. Mas tudo se passa como se tivésseis a graça e eu não. Sou livre para gostar ou não de lagosta à americana, mas, se não gosto dos homens, sou um miserável e não posso encontrar lugar ao sol. Monopolizaram o sentido da vida. Espero que compreendais o que quero dizer. Há 33 anos que esbarro em portas fechadas sobre as quais se escreveu: 'Se não for humanista,
não entre.' Tive de abandonar tudo o que empreendi; precisava escolher: ou era uma tentativa absurda e condenada ou era preciso que ela redundasse cedo ou tarde em seu proveito. Os pensamentos que eu não lhes destinava expressamente, eu não chegava a destacá-los de mim, a formulá-los; permaneciam em mim como leves movimentos orgânicos. Mesmo as ferramentas de que me servia senti que lhes pertenciam; as palavras, por exemplo: desejara palavras minhas. Mas as de que disponho arrastaram-se por não sei quantas consciências; arranjam-se inteiramente sós na minha cabeça em virtude de hábitos que tomaram nas outras e não é sem repugnância que as utilizo quando vos escrevo. Mas é pela última vez. Eu vos digo: ou amamos os homens ou eles não nos permitem trabalhar a sério. Eu não quero meiostermos. Vou pegar, agora mesmo, meu revólver, descerei à rua e verei se é possível executar bem alguma coisa contra eles. Adeus, senhor, talvez sejais vós quem vou encontrar. Não sabereis jamais com que prazer eu explodirei vossos
miolos. Se não — é o caso mais provável — lêde os jornais de amanhã. Lá vereis que um indivíduo chamado Paul Hilbert matou, numa crise de furor, cinco transeuntes no bulevar Edgar-Quinet. Sabeis melhor que ninguém o que vale a prosa dos grandes diários. Compreendei que não sou um 'furioso'. Estou muito calmo, ao contrário, e vos peço aceitar os meus melhores cumprimentos.
Paul Hilbert.”


Trecho de Erostrato publicado em O Muro, de Jean Paul Sartre.

Um comentário:

Alessandro disse...

Gente, estou correndo um bocadinho por causa de um freela que eu descolei, mas gostaria muito de encontrá-los na sexta, lá no Gruta. :-)

Saudade!

Mafra, noutra hora vou querer ler este conto.

Abraços prophanos!