quinta-feira, 8 de maio de 2008

ISABELLA É UMA ILHA

Coloquem as crianças em cima dos muros, estourem pipocas e champanhe, pintem as ruas, as unhas, linguas pontiagudas e cotovelos acoplados em poltronas acima de qualquer suspeita e não se esqueçam das bandeirinhas verdeamarelas penduradas, tremulando ao vento - comemoraremos como uma copa do mundo a prisão do suposto casal assassino.

E dentro de uma sala lúcida (talvez) alguém assista o nosso espetáculo (o espetáculo dos meios de comunicação e sua massa disforme embora sob controle) os nossos urros de vitória, gritos no improviso, nossos sorrisos rotos, tortos, mortos - porque no canto da cozinha, bem agora, o calendário de Jesus Cristo dos nossos domingos passados fora trocado por um novo, cuja criança crucificada (conhecida por todos) gera muito mais capital.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Do fundo.



Encontrei o fim, o fundo do poço, como dizem por aí. Não vale nada, neste momento, tudo o que conquistei com árdua luta. Entreguei-me completamente a batalhas que não enxergava, sem perceber que não carregava arma alguma. Estava no pelotão de frente, servindo de escudo às marteladas diárias que, na verdade, não estavam endereçadas ao meu coração. Submisso a todas as dores, anestesiava-me com a percepção fechada e minha voz respondia muda àquilo que eu imaginava ser uma desgraça inevitável.

Todos sofremos e reclamar é luxo, é falta de fibra, é atitude de fracos. Sempre aceitei essa idéia sem questionar. Qual direito eu teria? Deveria, sim, era agradecer, pois era um felizardo e estava tão distante de tantas misérias piores que a minha. Era também um cidadão e cumpria exemplarmente meu dever para garantir o bem-estar social. Qualquer infelicidade minha seria injusta e inútil.

Mesmo assim meu coração queimava em meu peito todos os dias. Não era ódio, não era indignação, era um não-compreender-bem-o-que-se-passa; uma pedra que pesava cada vez mais um culpa incoerente, mas que eu também recepcionava sem procurar entendê-la. Tratava apenas de suportar meu fardo e seguir a trilha de volta para mais uma noite de merecido descanso.

Certa noite, esperando o ônibus, apareceu esse homem, que logo de cara pensei que fosse um lunático. Pediu um cigarro e eu disse que não tinha, que não fumava, a mais pura verdade. Ele então tirou um maço do bolso, um isqueiro prateado, acendeu um pra ele e me ofereceu outro. Disse que não, obrigado, que não fumava. Respondeu que eu deveria experimentar, que eu nunca teria nenhum tipo de verdadeira convicção nesta vida se continuasse a negar e rejeitar as coisas sem saber realmente o que eram. Argumentei que fazia mal pra saúde e ele acrescentou que dormir no ônibus àquelas horas também.

Aquilo me fez refletir um pouco e depois de algum tempo quieto ele voltou a falar pra contar uma história estranha. Perguntou se eu sabia porque ele ainda não havia morrido. Respondi que não, não sabia. Ele disse que era óbvio que não, a pergunta era brincadeira, pois ele já tinha morrido. Já tinha morrido? Sim, morri uma vez, alguns anos atrás. Claro que sim, percebe-se... É sério! E o que faz aqui então? É que eu voltei. Por que voltou? Bom, esse mundo pode até ser uma desgraça, mas tem algumas vantagens: pra resumir, nós podemos escolher a desgraça à qual nos entregamos e, uma coisa muito importante, no céu não tem cerveja e nem bebida alguma, no inferno o preço é alto e no purgatório ela é quente, light e sem álcool, então voltei.

Achei graça e ele, antes de se despedir e ir embora, recomendou que eu prestasse mais atenção nos céus e nas nuvens, pois deus está sempre pronto pra disparar suas carabinas e geralmente não nos dá tempo de cumprir aquelas promessas ou satisfazer aqueles desejos de sempre, e que nós sabemos disso inconscientemente e é por isso que matamos tanto tempo e cultivamos tanta pressa e tantas necessidades mais acessíveis aos nossos cartões de crédito, para não lembrarmos que nossas vidas nunca serão completas e nos iludirmos com a melhor satisfação que nosso salários puderem pagar.

Sozinho, no ônibus, durante os oitenta minutos que me distanciavam de casa, experimentei uma sensação de conforto por quase compreender aquele ardor no coração e não consegui dormir durante a viagem.

Era início de semana e aquela sensação se manteve durante os outros dias, mas a cada minuto que passava ela se transformava em desconforto; um desconforto cada vez mais forte.

No sábado, depois do expediente, a angústia era tão extrema que eu não sabia o que fazer. Não voltei pra casa, resolvi encarar um porre, o meu primeiro. Descobri o prazer de fumar. Lembrei de todas as pessoas que encarava dia após dia. Pessoas cansadas e enfermas nos ônibus-leito dos caminhos da morte em vida de todas as madrugadas; pessoas saudáveis e felizes com as bonificações e gratificações dos salários que garantiriam o pagamento das faturas de todos os cartões de crédito; pessoas como eu, que certamente carregavam um coração em chamas no peito. Pensei nos caminhos que pisávamos, constantes em direção, sentido e horário. Tentei imaginar em qual momento da vida acontecia a menor intensidade de nossa cegueira.

Não dormi, o cansaço não me atacou. Permaneci no mesmo ritmo durante o domingo e fui repreendido por todos que conheciam e estavam acostumados com minha rotina quieta e servil. Decidi então me isolar. Trancado no quarto, conversando com o cinema que o teto me apresentava, não pude resistir, o sono me alcançou.

Acordei no outro dia, cansado ainda, e automaticamente segui os atos marcados de todos os dias. Banho, café, elevador, bons dias, mas não dormi no ônibus. Toda a viagem auto-denunciando minha fraqueza; que quando finalmente identifico a razão daquela inquietude, percebo que não tenho forças e nem coragens de assumí-la, de levá-la adiante.

Caminhando novamente o mesmo roteiro de sempre, aceito que encontrei o fim, o fundo do poço, como dizem por aí. Fraco, submeto-me à minha incapacidade de fugir. Meus passos seguem o horário, a direção e o sentido rotineiros de sempre.

São sete e quarenta e oito da manhã, segunda-feira, e engulo o gole seco do nó da garganta que me garante que, apesar de tudo, essa vida continuará sendo o que sempre foi.