quarta-feira, 30 de abril de 2008

Da fenda.



Encontrei uma brecha, uma fenda. Ficava esquecida no alto de um edifício; capricho estilístico de algum arquiteto que já deveria ter morrido há algumas décadas. Sorte dele.

Não foi muito difícil subir até lá da primeira vez. Estava totalmente suja, como era de se esperar, cheia de corpos, de sons e de sujeiras desses ratos voadores que apelidamos de pombas. Voltei na segunda noite com veneno e uma tela de arame. Primeiro fechei a abertura, depois espalhei o veneno. O efeito seria completo em vinte minutos, mas decidi voltar na noite seguinte. Um dia inteiro seria suficiente para que as outras aves entendessem o recado.

O terceiro passo foi a limpeza. Gastei toda a madrugada nisso e tive de sair às pressas quando o sol ameaçava surgir por trás das cadeias de arranha-céus, para que nenhum olhar menos desatento flagrasse meu segredo.

A essa altura já possuía todo o suprimento que seria necessário durante os dias que passaria ali: bebidas, alimentos enlatados, munição e um fuzil de precisão.

Nunca entendi nada sobre armas. Sabia apenas que era necessário apontar no alvo e puxar o gatilho; e pensava que para isso havia de existir algum motivo. Dessa arma eu não sabia nem o nome. Escolhi nas fotos do catálogo de um traficante que procurei conhecer, a arma mais bonita e ameaçadora da relação. Relativamente leve, fácil de montar e surpreendentemente precisa, mesmo nas mãos de um inexperiente como eu. Gastei boa parte das minhas economias para comprá-la.

Pratiquei num sítio abandonado na periferia da metrópole. Acertava latas de cerveja e, às vezes, cabeças de galinhas e de cachorros, a mais de trezentos metros de distância. Isso no começo.

Foram mais duas noites para abastecer a fenda. Na terceira noite, depois de camuflar a tela de arame com um pano quase transparente, instalei-me no local. Esperei mais três dias antes de efetivamente dar início aos meus planos.

Três dias sem leitura, sem música, sem contato algum com nenhuma pessoa, mas com alguma reflexão.

Observava o vale urbano que se abria logo abaixo, cercado de edifícios comerciais; lojas, puteiros, igrejas. Observava toda a massa de pessoas que se movimentava por ali. Não pareciam formigas pela pequenez que transpareciam quando vistas de tão alto, mas sim pelos diversos caminhos que formavam na superfície do vale, quase como filas indianas, indo e voltando pelos mesmos caminhos com o andar cansado e inconsciente atrás de uma glória que nunca alcançariam. Uma glória que há muito tempo lhes havia sido prometida e nada mais. Algo no qual acreditavam por nunca terem ouvido falar e nem ousado fantasiar noutras opções mais relevantes ou, no mínimo, mais gratificantes. Arrastando nas solas calejadas dos pés, sem perceber, toda a dor da insatisfação e da frustração que ingenuamente carregavam nas costas.

Durante as noites os caminhos que ali se formavam não eram tão marcados. Percebia lá de cima a falta de preocupação daqueles insanos que passeavam. Como o silêncio era gigantesco nessas horas, quase que conseguia distinguir alguma melodia que vinha lá de baixo, direto das gargantas quase livres daqueles loucos. Era algo agradável, quase sempre, e logo na primeira noite decidi excluí-los de meus planos. Mas, mesmo assim, era perfeitamente perceptível o fato de que eles também buscavam alguma glória. A diferença deles para os diurnos era a maior variedade de glórias e a escassa unanimidade com relação a qualquer uma delas.

Foram quatro noites e três dias antes de qualquer coisa. As reservas de alimentos e bebidas estavam indo como o planejado. O único consumo que ultrapassou as contas foi o dos cigarros. Percebi que teria de economizá-los, duas ou três horas antes do primeiro disparo.

Sabia que não tinha nenhuma justificativa para o que ia fazer. E isso era a coisa que mais me aliviava e trazia alguma paz. Não ter, não necessitar justificativa alguma para o que quer que fosse; era isso o que buscava a anos e que confirmava ali.

Tudo o que tentamos justificar na vida, eu e aquelas formigas lá embaixo, é aquele peso que carregamos nas costas, sem perceber; é a desculpa para pisarmos todos os dias os mesmos caminhos incômodos aos quais nos entregamos; é a direção da maldita e utópica glorificação. Então me sentia muito bem por não ter justificativa alguma.

Nunca fui um bom estudante de biologia, muito menos de anatomia humana. Aliás, nunca fui muito bom em estudar ou aceitar o que a fôrma dos ensinos obrigatórios insistem em nos conformar. Apenas enganava o que era necessário para me deixarem em paz. Mas aprendi alguma coisa assistindo seriados de televisão e sabia alguma coisa, leigo, sobre onde acertar uma pessoa para matá-la rápido ou não. Eu queria que morressem, sim, mas que morressem devagar, pra que tivessem tempo de raciocinar alguma coisa antes do fim.

Sabia que era muito provável acertar algum inocente. E este era outro fator que também me aliviava. Claro que sim. Por que seriam tão coitados, se todos nós somos inocentes? E todos somos injustiçados e efetivamente mortos, ainda em vida, sem culpa alguma, igualmente. A culpa não está, nunca esteve em nós. Ela está sempre nos olhos daqueles que querem obrigá-la e nos corações daqueles que aceitam a piada da inocência. Então não me preocupei com nenhum inocente.

Sabia também que não mudaria nada com aquilo. Não queria e sabia que não podia mudar coisa alguma. Mas, se até então nunca tinha encontrado, por mais que procurasse, nada que mudasse ou justificasse coisa alguma, também não me preocupei com nada disso.

Eram sete e quarenta e oito da manhã, segunda-feira, disparei o primeiro tiro...

segunda-feira, 28 de abril de 2008

sábado, 5 de abril de 2008

Sarau no El Cafofo, dia 11

Nada menos que uma noite daquelas, não?

Beijos e abraços, pessoal!