quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Ambo


A vodca toda secava no chão, contaminada pelo pó de tantos dias que o apartamento ficou fechado. Jogado numa cadeira, os braços pendurados pra trás, sentia escorrer o líquido peito abaixo.

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Na verdade, sou uma pessoa tranqüila na maior parte do tempo. Aquilo que fiz, o caso da morte, foi necessário. Qualquer um faria igual.

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Não havia nitidez em nada. Sabia que aquilo ali era a pia da cozinha, porque era tudo o que existia ali; sabia que aquele som era de passos pisando cacos de vidro, pois o cheiro da vodca invadia meu nariz. Tem horas que nossa percepção nos surpreende.

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Tem horas que nossa percepção nos surpreende. Imaginei que fosse doer, mas não. Sangrou, mas quase não, muito pouco. O corpo ainda estava ali. Sentia o líquido no chão.

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A vida também surpreende às vezes; ao menos uma vez. Lembrei de como teria sido pra outras pessoas, mas creio que não era nada parecido. De qualquer forma, tinha outras dores pra me preocupar... as minhas.

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E agora? Continuar aqui? Minhas preocupações não eram nada de especial enquanto não fosse possível algum movimento. Esperava a depressão pós êxtase, mas ela não chegava.

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Matar ou morrer deve levar ao êxtase. Só não se pode acostumar com isso. Creio que, na verdade, não acostumamos. São fatos, simplesmente.

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Distância daquilo; os pés continuam molhados, pesados. Ajoelho diante do deus morto, morto, na parede. Não rezo e nem peço, não há mais tempo.

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Não há mais tempo. Os pés deixam marcas aguadas e brilhantes no piso claro da cozinha. Lembro de quem sou.

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Penso em quem era. Não importa mais, ficou pra trás. Nem ao menos lembro quem matou.

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Não faço idéia de quem morreu. Será logo, a descoberta?

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Na verdade, não fazemos idéia de nada.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

conheço seu favores aos militantes da causa
calcinha a mais sensual rendada
mancha na esteira que balança nas rajadas de vento
ponta de agulha ultima estaçao
hey hey folk
na universidade alimentava um idealismo
alguma sucessivas subidas
vejamos
hey hey dormindo com algum calouro
fracassado remoendo a posibilidades
espelucas baratas era o que podia pagar
estocadas
lamber suas orelha
repetir sujeiras

sábado, 20 de outubro de 2007

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Reclamou do jeito que a olhei. Foi a primeira coisa que fez quando me encontrou. Não tive culpa e nem como evitar. Disse que era melhor não ficar tão nervosa e prestar mais atenção no que estava dizendo. Sim, meus olhos arregalaram naquele momento. O desejo ferveu em meu corpo, como fugir disso? Tive que confessar, ela nem tinha percebido. Tudo bem, que vá embora, não posso fazer nada. Desmentir tudo por conta de seus caprichos? Isso não. Afinal, não fui eu quem expôs aquelas fotos naquele muro do centro da cidade.

Um amigo me ligou. Estava ouvindo música e não quis atender. Apostei que ele não morreria tão cedo.

Todos aqui na cidade reclamam seus direitos. "Meus direitos, meus direitos", eles dizem, mas nem sabem de nada do que falam. Está bom demais, para eles, acolchoarem-se num pano quente após o dia duro de trabalho, desejando ter a certeza de que a noite passará e tudo continuará igual. Não pensam e nem percebem que nenhuma noite passa sã.

Os insanos ficam satisfeitos com suas tochas nas mãos. Usam-nas para ferir um pouco a noite.

Ela tentava dormir, estava ansiosa demais. Nas janelas dos prédios os senhores jogavam água e reclamavam do barulho que vinha da rua. Jovens drenavam garrafas na calçada enquanto dois trabalhadores colavam cartazes no muro.

Catártico, seria esta a palavra para jogar com os cartazes?

A cento e oitenta quilômetros por hora, uma alma chora na rodovia, mas não sabe o porquê. Sente pena dos filhos dos outros motoristas e decide chegar vivo em casa ou em qualquer lugar. Ele sabe que qualquer hora a gasolina acaba, as lágrimas secam, o furor passa. Queria um pouco mais de combustível pra respirar, mesmo que fosse adulterado.

Tentei me convencer de que não eram meus olhos, que tudo era daquele mesmo jeito. Consegui, não eram meus olhos.

Pensei nos homens que colavam os cartazes, nas fotos, no baixo ordenado que receberiam.

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Quando acordei a pequena fresta de luz que entrava pela janela lembrou que era domingo. Senti pena dos filhos dos motoristas, pois seus pais tinham mais o que fazer. Senti medo de todas as crianças, imaginando o que se tornariam quando crescessem.

A empregada tocou o interfone e disse que era hora de lavar os lençóis. Medi meu corpo e calculei a possibilidade de entrar no cesto de roupas sujas. Lembrei que não eram panos meus e que estava num hotel. Deixei as chaves na recepção e saí.

A história das fotos mexeu mesmo com seus nervos; o jeito que andava demonstrava isso claramente. Evitei encontrá-la e entrei num comércio antes que nos cruzássemos. Provavelmente o recepcionista diria que eu acabara de sair. Ela certamente perguntaria se tinha levado meus pertences. Ele diria que não. A garota das fotos correria então ao lugar de sempre, mas eu não estaria por lá.

Os filhos dos motoristas estão em todos os lugares. Não parecem tão coitados, assim de perto. Parecem jovens que gritam com garrafas nas mãos. Deixei de sentir pena deles. Havia uma criança dessas no banheiro, sozinha, caída e vomitando o pouco de noite que passara. Não devia fazer diferença pra ninguém. Mais tarde voltou aos amigos. Sorridente e empolgado, contou todas as aventuras que viveu no banheiro. Desde o vômito até o cara que passou por cima dele sem dar atenção.

As gentes da cidade têm todos os direitos. Miram os olhos no próprio umbigo e ali até enxergam o universo, como dizem por aí. Prefiro observá-las; o jeito como se decompõem com o tempo sem perceber...

Lembro das fotos que se apagarão em uma semana chuvosa. Gostaria de ter evitado, mas estávamos todos ali. Os senhores jogando água pelas janelas, os jovens, os trabalhadores que colavam os cartazes e eu apenas atravessava a rua, não pude evitar. Também nunca apreciei a promiscuidade desses ares que respiramos por aqui, mas como fugir disso?

A duzentos e vinte quilômetros por hora engatilhei minha pistola e dei um tiro no vácuo; o volante do carro solto e uma garrafa entre as pernas. Tentei pensar numa explicação do porquê fazia aquilo, mas não havia resposta, apenas me sentia melhor.

Aposto que existe, neste momento, alguma garota, com seus menos de vinte, chorando em seu quarto por algum amor que nunca existiu; e que todos os garotos se vangloriam diante dos amigos, mesmo que não tivessem satisfeito a mulher. Acredito que os senhores só queriam mesmo era dormir, mas não entendo porque escolheram um apartamento justamente naquela região. Também não entendo como conseguem tantos trabalhadores viverem com tão baixo ordenado. Não sinto nada especial por nada disso, na verdade. Apenas penso que talvez não fossem mais do que simples fotografias.

A recepção do hotel trocou de turno. A nova recepcionista é muda. A garota das fotos senta na calçada em frente, acende um cigarro e observa, no fim da rua, a esquina e o cruzamento com a avenida, reavivando a esperança a cada vulto que aparece na madrugada.

A cento e oitenta batimentos cardíacos por minuto, já se está muito longe e não há mais combustível para voltar.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

O COLECIONADOR DE PONTAS

Na falta do que fazer, colecionava pontas. E eram tantas pontas diferentes, dos mais variados tipos de fumo, das mais diversas procedências, tinha de tudo quanto era canto, da Argélia, da Nigéria, da Colômbia, da Holanda, da Irlanda, do Malásia, do Equador. Tava sozinho no seu quarto agora, aumentou o som da vitrola, Miles Davis solava, o baseado tava ficando pequeno, quase acabando, virando ponta, olhou para a multidão que passava lá embaixo, fazia tempo que não guardava uma ponta, pensou em arremessá-la, mas mudou de idéia, apagou o cigarro no peitoril da janela e guardou a ponta no bolso. Lembrou-se de quando começara com aquela estória de juntar pontas, foi ali mesmo, naquele quarto que guardou a primeira das incontáveis que tinha agora, ia juntando tudo dentro de uma caixa de fósforos, até que aquela minúscula caixinha ficou menor ainda e teve que troca-la por um maço de cigarros vazio, depois, quando o maço ficou pequeno, passou para uma caixa de sapatos. E as pontas só iam aumentando, tirou as roupas de uma das gavetas do armário, a gaveta de baixo, virou a caixa de sapatos com todo o seu conteúdo lá dentro, depois jogou outras por cima. E assim foi, até o dia em que o armário inteiro estava lotado de pontas. Demitiu a empregada com medo que ela contasse para alguém, ela parecia uma informante da SS e por isso ele achou melhor demiti-la. Certa tarde, quando distraidamente abriu uma das portas do armário, uma avalanche de pontas caiu sobre ele, o armário também tinha ficado pequeno para todos aqueles restos de cigarro. Tirou as coisas do quarto, menos a cama e a vitrola, e as pontas foram empilhando-se em milhares de colunas, que depois tomaram o corredor, parte da sala, parte do banheiro, exceto o canto onde ficava o chuveiro. Metade da cozinha também tava tomada por pilhas e pilhas de pontas. Olhou outra vez para baixo, para a multidão viajante. O disco do Miles Davis tinha acabado, decidiu descer e dar uma volta pelas ruas do bairro, o céu estava coberto de nuvens escuras e ele estava mesmo afim de tomar um banho de chuva. Fechou a janela e saiu, apertou o botão do elevador, esperou que ele subisse até o sexto andar, onde morava, mas então mudou de idéia e decidiu descer pela escada, quando estava quase chegando no térreo, ficou em duvida se fechara ou não a porta e decidiu subir outra vez para conferir. E foi assim, pegou o elevador dessa vez e chegando no apartamento, percebeu que a porta estava entreaberta, deu uma espiada lá pra dentro, viu a ex-empregada informante da SS com outros dois policiais dentro da sua casa, tinham descoberto o seu segredo, e tinha tanta maconha armazenada naquele apartamento que seria impossível não ser acusado de tráfico, pensou em correr, sumir dali, pegar o primeiro avião para a Holanda, quando de repente, a informante da SS apontou para ele que viajava lá da porta, os dois tiras vieram atrás, correndo com seus cassetetes e gritando, desceu as escadas correndo, no terceiro andar, parou escondido atrás de um vaso gigante de uma astróloga maluca. Escutou o elevador descendo e viu quando um dos policiais passou, descendo as escadas até os andares de baixo, então subiu lentamente e foi até o vigésimo segundo, o ultimo andar, não morava ninguém por ali. Encostou-se em um canto, remexeu nos bolsos encontrando a ponta, a ultima ponta que restara de toda a sua coleção, acendeu e deu um longo trago. À todos os malucos do mundo, pensou. E pensou também na informante de SS que a essa hora já devia estar com as saias abaixadas para os tiras, e sentiu o cheiro da fumaça que mistura ao som de Charlie Parker inundava os corredores e a escadaria do prédio, vindo diretamente lá do sexto andar ou será que vinha do fundo da sua mente?
Estas eram pra ser palavras ficcionais que não tinham nada a ver com isso. Qualquer semelhança com fatos reais terá sido mera consequência do que poucas horas de sono semanais e alguma ceveja podem causar.



Morreram de sede os pobres animais, coitados. E o pior é que ainda ficaram tristes nos últimos momentos, imaginando que alguém sentiria alguma falta. Esperavam algumas últimas palavras, alguma compaixão, saudades ou cremação, se fosse possível. Eram poetas, mas suas últimas palavras não tinham sentido, nada de significação. Nem eles mesmos entendiam, apenas carregavam o crachá e se desculpavam dizendo que sempre tinha alguma coisa fodendo a vida. Morreram de sede os pobres animais porque não fodiam a vida, ou fodiam pouco, não o bastante.

É de antes desse tempo que se sabe que tal morte se reservava apenas a engenheiros, doutores, cristãos e suas variantes (padres não), senhores e senhoras e medrosos em geral, quase todo o resto.

Passaram a mortos-vivos, não chegarão à imortalidade. Não aquela das letras, mas a que se deve procurar a cada momento. Aquela que se pode encontrar em qualquer instante no qual os pulmões, ou apenas um, se necessário, continuam respirando e enquanto alguma idéia esteja funcionando.

Poderiam morrer de sede de qualquer outra forma, os poetas: o estoque de cerveja acabando, por exemplo. Mas nem isso. Continuam lá, as garrafas, esperando. E continuam lá, eles, esperando.

Mas também, tanto faz. Sendo o que são, seria mais natural que não fossem plural, que estivesse cada um no seu canto. Morrendo de sede juntos, são ainda alguma aberração que valha.

Bem, ao menos não nasceram mortos...

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

0

Broxe amolecido da exaustão da caminhada do hiper mercado onde assinava ponto, gari de umas pardas covinhas mais um lance de escadas estava nas caçambas de entulho.

Com fedido jaleco amarelinhosustinho ficar musicado. meu gemidinho

Mania com segredo de seu namorado bombeado utilircio fixo da fiscalização.

Dengo chamado por esse que escreve, ganhamos tarde de folga.

Sabe das ultimas ouricei aquela noite é estou com bonança de negócios.

Dengo depois se agarra no almoxarifado fadinha.

Que excitação de ser imaginativamente flagrados.

Posso usar sua caneta

Estrondo de fisionomias pálidas

Saíram um balão de quadrinho cafetão


BICHARADA BICHARADA

BICHARADA BICHARADA BICHARADA

BICHARADA

Super ofertas de fofoqueiro

BICHARADA

Calças COMPRIDAS

BICHARADA

BICHARADA

BICHARADA BICHARADA

BICHARADA

BICHARADA

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Promessa

Porque a busca prossegue. Porque o risco também. Gostaria que encontrassem um fragmento de vida nesta poesia...


Promessa

todos os sentidos
na avenida
as sensações
despertadas

e esquecidas
no outro momento


há vida

no andar daquela mulher
na fumaça que sai
da xícara de café
no riso adolescente
que se desfaz
antes de se tornar adulto

no ruído dos aviões
que voam para longe
qualquer lugar
no canto dos pássaros
presos em gaiolas
um novo mar
um novo onde
e o desejo existe

ouço todos os novos sons
em velhas notas
estancado
como se fosse morte
não é verdade
onde há você
haverá vida?
haverá alguém?

por fim, o gole na cerveja
a volta ao lar
alguma conversa sobre contas
e as roupas sujas
que não sei onde jogar
noutro dia
haverá... vida


Não sei se encontraram fragmento algum de vida aqui, mas encontrem beijos e abraços prophanos!

Defective Smile

FIZ LIMPEZA NOS DENTES.


ESTOU SATISFEITO COM MEU SORRISO LIMPO, MAS AINDA DEFEITUOSO.

MEU NOME?

VOCÊ NÃO ADIVINHA MEU NOME...



Ah, não... isso é só a poesia do instante. Se é que é poesia.

Beijos e abraços prophanos!

terça-feira, 9 de outubro de 2007

EMILIA

Eu conheci Emilia em uma das minhas andanças por essas estradinhas de terra que a gente nunca sabe aonde vai dar. Era uma manhã quente de sol e as solas dos meus sapatos pareciam duas frigideiras. A casa dela era toda feita de compensado, dessas que uma ventania mais forte bota abaixo em questão de segundos. Fui até lá pedir um prato de comida e tive sorte, pois além de me servir costela de porco ela me contou que o seu marido estava em outro estado a trabalho, eram recém casados e não foi nada difícil ficar por lá dois dias e duas noites inteiras. Na manhã do terceiro dia apanhei meu chapéu e o meu violão e peguei a estrada outra vez, a Emilia prometeu que me encontraria em Veracruz na semana seguinte. E não deu outra, eu tava lá no mesmo bar de sempre quando ela chegou com uma saia e uma mala enormes. Seguimos a estrada, pegando carona até uma fazenda de laranja em São José. Emilia tinha largado o marido, que segundo ela, não passava de um bêbado estúpido. No dia seguinte já estávamos empregados, trabalhávamos na colheita quatro horas seguida, parávamos por uma hora para o almoço e depois retornávamos para as quatro ultimas horas. Era um trabalho pesado, mas seguíamos executando-o e no final de cada dia eu tocava o meu violão por cerca de duas horas na varanda em frente a nossa casa, enquanto a Emilia preparava o rango. Tivemos quatro filhos, um seguido do outro, mas nenhum se parecia nem um pouco comigo. No quinto ano, Emilia me botou pra fora de casa depois de uma das nossas incontáveis discussões, eu andava desconfiado que ela tava se encontrando com o sobrinho do dono da fazenda e fui tirar satisfação. Dois dos meus filhos se pareciam com ele, dos outros dois, um era a cara do entregador de leite e o quarto era um mistério. Ela atirou uma tampa de panela na minha cabeça e tentou quebrar o meu violão, tomei-o de volta e corri para a estrada outra vez. Enquanto ela me xingava e continuava atirando coisas na minha direção. Fui parar em Helena, eu tinha alguns amigos nessa cidade, fiquei na casa de um deles por uns tempos e mais ou menos nessa época comecei a tocar na estação de trem até juntar uma grana. O dinheiro não dava pra nada, torrava tudo com bebida e cheguei a ficar internado um tempo com problemas no fígado.Bom, isso já faz muito tempo, uns trinta anos, talvez. Esses dias, um desses meus filhos que não se pareciam nada comigo me encontrou, disse que tinha vindo através de um anúncio que eu colocara meses antes em um jornal que circulava por todo o estado, no tal anúncio eu procurava por um parceiro que tocasse gaita e soubesse algumas músicas, tava afim de gravar um disco e tinha centenas de composições próprias. Esse meu filho então se ofereceu para pagar pelas cópias do disco, aceitei na hora e até deixei o imundo hotel em que eu vivia. Ele contou também que a Emilia tinha se casado com um motorista de ônibus intermunicipal e que tivera outros sete filhos. Todos com a cara do padeiro e do carteiro, deduzi. Acabei desistindo da idéia de encontrar um parceiro, gravei todo o disco sozinho, doze canções, doze grandes canções de amor. Nem é preciso dizer que uma delas, a única que chegou a tocar certa vez aqui em uma rádio local chamava-se Emilia, e naquela ultima tarde de gravação, enquanto eu cantava uns versos sobre minhas caminhadas pelas estradas do interior, olhando esse meu filho que acompanhava cada movimento dos meus dedos, que embora velhos, continuavam ágeis, por um momento cheguei a pensar que ele fosse bem parecido comigo. Talvez não fosse filho daquele sobrinho do dono da fazenda em que eu trabalhara, talvez nenhum deles fosse. Toquei umas notas erradas então, até que por fim tirei esse pensamento da minha cabeça, afinal de contas eu precisava continuar com o Blues.



o saco do pião enroscou na cela
vencido com a bolas triturada









um recado dirigido





até agora nessa gondola qual é






boceta aquela bem rosada




reflito cagando
imagina sóbrio e comissionado

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Erostrato


Comecei a crer que meu destino seria curto e trágico. Isso me amedrontou a princípio, depois me habituei. Encarado sob certo ângulo, é atroz, mas, de outro lado, dá ao instante que passa uma força e uma beleza consideráveis. Quando desci à rua, sentia em meu corpo uma força estranha. Tinha junto a mim meu revólver, essa coisa que explode e faz barulho. Mas não era mais nele que punha minha segurança, era em mim, eu era um ser da espécie dos revólveres, dos petardos e das bombas. Eu também, um dia, no fim de minha vida obscura, explodiria e iluminaria o mundo com uma chama violenta e fugaz como um clarão de magnésio.
Aconteceu-me, por essa ocasião, ter muitas noites o mesmo sonho. Era um anarquista, tinha-me colocado à passagem do czar e levava comigo uma máquina infernal. À hora ajustada, o cortejo passava, a bomba explodia e sob o olhar da multidão nós voávamos pelo ar, eu, o czar e três oficiais com galões de ouro. Eu ficava, agora, semanas inteiras sem aparecer no escritório. Passeava pelos bulevares, no meio de minhas futuras vítimas, ou encerrava-me no meu quarto fazendo planos. Despediram-me no começo de outubro. Ocupava, então, minhas horas vagas redigindo a seguinte carta, que copiei em 102 exemplares.

“Senhor
Sois célebre e vossas obras alcançam tiragens de 30 mil exemplares. Vou dizer-vos por quê: é que amais os homens. Tendes o humanismo no sangue: eis a vossa sorte. Desabrochais quando estais em boa companhia; quando vedes um de vossos semelhantes, mesmo sem conhecê-lo, sentis simpatia por ele. Admirais o seu corpo, pela maneira como é articulado, pelas pernas que se abrem e se fecham à vontade, pelas mãos sobretudo; agrada-vos que haja cinco
dedos em cada mão e que o polegar passe a opor-se aos outros dedos. Deleitai-vos quando vosso vizinho pega uma xícara da mesa, porque ele tem um modo de pegar que é propriamente humano e que sempre descrevestes em vossas obras como menos elástico e menos rápido que o do macaco, não é? Porém muito mais inteligente. Amais também a carne do homem, seu comportamento de um mutilado em reeducação, seu ar de reinventar a marcha a cada passo e seu famoso olhar que as feras não podem suportar. Foi fácil, pois, encontrar a linguagem que convém para falar ao homem de si mesmo; uma linguagem pudica mas apaixonada. Os indivíduos atiram-se com gula aos vossos livros, lêem-nos numa boa poltrona, pensam no grande amor infeliz e discreto que lhes dedicais e isso os consola de muitas coisas, de serem feios, covardes, cornos, de não terem recebido aumento em primeiro de janeiro. E diz-se, de bom grado, de vosso último romance: é uma boa ação.
“Tereis curiosidade em saber, suponho, o que pode ser um homem que não gosta dos homens. Pois bem, sou eu e eu os amo tão pouco que vou, agora mesmo, matar uma meia dúzia deles; talvez vos pergunteis: por que somente uma meia dúzia? Porque meu revólver não tem mais que seis cartuchos. Eis uma monstruosidade, não? Além do mais, um ato propriamente impolítico? Mas eu vos digo que não posso amá-los. Compreendo muitíssimo bem o que vós sentis. Mas o que neles vos atrai a mim me repugna. Vi, como vós, homens mastigarem com moderação, conservando o olho adequado, folheando com a mão esquerda uma revista econômica. É culpa minha se prefiro assistir à refeição das focas? O homem nada pode fazer de seu rosto sem que isso vire jogo fisionômico. Quando ele mastiga conservando a boca fechada, os cantos dos lábios sobem e descem, ele parece passar sem descanso da serenidade à surpresa chorona. Gostais disso, eu o sei, chamais a isso vigilância do Espírito. Mas a mim isso me aborrece. Não sei por quê; nasci assim.
“Se não houvesse entre nós senão uma pequena diferença de gosto, eu não vos importunaria. Mas tudo se passa como se tivésseis a graça e eu não. Sou livre para gostar ou não de lagosta à americana, mas, se não gosto dos homens, sou um miserável e não posso encontrar lugar ao sol. Monopolizaram o sentido da vida. Espero que compreendais o que quero dizer. Há 33 anos que esbarro em portas fechadas sobre as quais se escreveu: 'Se não for humanista,
não entre.' Tive de abandonar tudo o que empreendi; precisava escolher: ou era uma tentativa absurda e condenada ou era preciso que ela redundasse cedo ou tarde em seu proveito. Os pensamentos que eu não lhes destinava expressamente, eu não chegava a destacá-los de mim, a formulá-los; permaneciam em mim como leves movimentos orgânicos. Mesmo as ferramentas de que me servia senti que lhes pertenciam; as palavras, por exemplo: desejara palavras minhas. Mas as de que disponho arrastaram-se por não sei quantas consciências; arranjam-se inteiramente sós na minha cabeça em virtude de hábitos que tomaram nas outras e não é sem repugnância que as utilizo quando vos escrevo. Mas é pela última vez. Eu vos digo: ou amamos os homens ou eles não nos permitem trabalhar a sério. Eu não quero meiostermos. Vou pegar, agora mesmo, meu revólver, descerei à rua e verei se é possível executar bem alguma coisa contra eles. Adeus, senhor, talvez sejais vós quem vou encontrar. Não sabereis jamais com que prazer eu explodirei vossos
miolos. Se não — é o caso mais provável — lêde os jornais de amanhã. Lá vereis que um indivíduo chamado Paul Hilbert matou, numa crise de furor, cinco transeuntes no bulevar Edgar-Quinet. Sabeis melhor que ninguém o que vale a prosa dos grandes diários. Compreendei que não sou um 'furioso'. Estou muito calmo, ao contrário, e vos peço aceitar os meus melhores cumprimentos.
Paul Hilbert.”


Trecho de Erostrato publicado em O Muro, de Jean Paul Sartre.

UM CONTO COM FINAL INTERESSANTE

Era uma vez um conto. um conto parado. estacionado. quase morto. pois nesse conto, nada acontecia, nada passava, nada partia. até um dia em que o Padre de uma cidadezinha semi-abandonada teve uma idéia: - Ei molecada, vamos dar um destino melhor para esse pobre conto moribundo - ele disse. e imediatamente começou a distribuir papel e caneta para os coroínhas que sentados ao pé de Nossa Senhora começaram a rabiscar seus destinos particulares para aquele conto. existiam três coroínhas e cada um deles deu um final diferente, o seu desfecho particular para a estória. o primeiro coroínha escreveu assim:
Era uma vez um padre, um padre de quem fui amante, certo dia estávamos enamorados bem na beirada de um poço abandonado, então ele veio para cima de mim com aqueles dedos sujos de hóstia, saltei para o lado e empurrei-lhe para o fundo do poço, onde seu corpo apodrece agora.
(esse era o final trágico) embora um tanto cômico (ao menos para mim).
o segundo coroínha escreveu então:
Era uma vez um padre, um padre de quem fui amante, certo dia, enquanto passeávamos pelo jardim ao lado da igreja, colhiamos flores, milhares delas e quando me dei conta de que não poderia suportar tanto peso, perguntei para ele se queria que eu colocasse lá atrás, claro que eu me referia ao depósito que ficava atrás da igreja, mas ele não entendeu direito, imediatamente levantou a batina e disse: coloque, meu filho, coloque bem aí atrás.
(esse era o final cômico) embora um tanto bobo (ao menos para mim).
o terceiro coroínha rabiscou:
Era uma vez um padre, um padre de quem fui amante, um dia enquanto eu me confessava para ele, contava sobre minhas experiências com drogas pesadas e prostituição, ele saiu de dentro daquele cubículo, começou a gritar e gesticular muito, cuspia enquanto falava, parecia fora de controle, o mais estranho de tudo era que sua roupa nesse dia era uma farda, uma espécie de farda de algum tipo de polícia medieval, então ele sacou uma arma e disse: só há uma maneira de livra-lo de todo o pecado - e então disparou um tiro na própria cabeça.
(esse era o final surpreendente) embora um tanto real (ao menos para mim).

Quando o terceiro terminou sua versão, o padre escolheu um dos meninos, aquele que tinha feito a melhor de todas as estórias e foi com ele para dentro de um quartinho escuro bem ao lado da estátua de bronze de um Jesus Cristo que agonizante, sangrava.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

O VENDEDOR BONZINHO

Era uma vez um vendedor de sapatos listrados que nunca conseguia vender nada. O problema nem era tanto o produto que ele vendia, ainda que fossem ridículos, existiam em número suficiente pessoas interessadas em compra-los. O problema era que o tal homem, o vendedor de sapatos, tomado de pena pelas coisas que via e dessa maneira tornando sua a miséria alheia, não conseguia mentir. E se esse fosse o único entrave entre ele e as pessoas que visitava, talvez até conseguisse vender um par aqui, outro acolá. O fato é que deixar de inventar estórias para o produto dessa forma contando somente a verdade sobre o material que era empregado na confecção dos sapatos, o processo de fabricação e a sua resistência, parecia não ser o bastante para o vendedor. Ele muitas vezes, comovido com a situação precária em que se encontravam, certas pessoas que visitava, saia a torto e direito distribuindo pares de sapatos para aquela gente pobre e mal alimentada, distribuía sapatos para todos, para os velhos, os jovens, homens, mulheres e crianças, principalmente para as crianças. Gostava muito delas, e chegava a sentir certo embaraço quando vendo a alegria que iluminava aqueles rostinhos imundos, não tinha um punhado de balas para distribuir com elas. E assim era a vida do vendedor, saia cedo de casa todos os dias e voltava tarde da noite, sem um único centavo no bolso e a imensa mala outrora cheia de pares de sapatos listrados, trazia agora, embaixo do braço, vazia. A esposa entendia o coração do marido e talvez por isso nada comentava sobre suas vendas fracassadas, deixava o prato de sopa na mesa, coberto com um pano, e quando ele chegava, era em sonhos que ela estava perdida. Então o vendedor bonzinho tomava devagar, gole por gole, sua sopa de galinha, tirava a roupa de trabalho, vestia o pijama e recostava-se ao lado da esposa que dormia, e todas as noites remexendo os bolsos vazios procurando um bilhete esquecido ou o cartão de certo alguém que nunca encontrara, cruzava os braços atrás da cabeça e fitava o teto na escuridão do quarto, com um sorriso incontido estampado no rosto já meio envelhecido e cansado.